
       Para a maioria das culturas 
  pré-colombianas o uso de plantas e ervas com substâncias de efeito psíquico 
  era sagrado. Através delas estes povos entravam em contato com o Divino. As 
  ‘drogas’ eram, neste contexto, um fator de integração coletiva e de evolução 
  individual.
       O uso ritual das “plantas de 
  poder” nas Américas hoje em dia pode ainda ser observado em vários cultos e 
  religiões sincréticas provenientes desta antiga tradição cultural de nosso 
  continente: o peyolt nos EUA, a Jurema na caatinga nordestina, o San Pedro e a 
  Coca na Bolívia e no Peru, as inúmeras sementes mexicanas (Ololiuhqui/Tlitlietzen, 
  Mescal Beans e as Colorines) e os diversos tipos de cogumelos alucinógenos e 
  espécies de Datura (Solanácea) são alguns dos exemplos mais conhecidos do uso 
  religiosos e/ou iniciático das drogas hierobotânicas em comunidades ameríndias.
       O Chá do Santo Daime ou Vegetal 
  é preparado do cipó do Jagube ou Mariri (Banisteriopsis caapi) e da folha da 
  Rainha ou Chacrona (Psycotria viridis) - naturais da região amazônica. A 
  bebida - também conhecida como Ayahuasca ou Yajé pelos índios e xamãs do 
  noroeste do Brasil e das regiões a leste dos Andes - é certamente oriunda da 
  tradução espiritual dos Incas.
  
  
       Segundo uma lenda, com a invasão 
  espanhola, o príncipe Atahualpa se rendeu e foi escravizado, mas o príncipe 
  Ayahuasca refugiou-se na floresta amazônica e o uso do chá permaneceu sendo 
  divulgado no Peru, na Bolívia e no Brasil.
       Seu uso após a era 
  pré-colombiana teria se difundido entre várias tribos indígenas, das quais se 
  tem razoável conhecimento antropológico. Ingerindo o chá, os índios absorviam 
  o espírito da planta e, em transe, tinham experiências psíquicas e vivenciavam 
  fenômenos paranormais, tais como a telepatia, a regressão a vidas passadas, 
  contatos com os espíritos dos seus antepassados mortos, presciência e visão à 
  distância. Vários relatos apontam ainda que alguns feiticeiros e xamãs usavam 
  a bebida para descobrir qual era a doença de seus pacientes e saber como tratá-la.
  
  
       Diversos antropólogos, 
  inclusive, tomaram o chá e descreveram seus efeitos para psíquicos. Ainda hoje, 
  várias tribos praticam rituais com o uso da Ayahuasca no Brasil, como as dos 
  Kampas e dos Kaxinawás, localizadas perto da fronteira com o Peru.
       Desde o início do século, nos 
  contatos culturais entre seringueiros e índios, a Ayahuasca passou a ser 
  conhecida e usada pelos migrantes nordestinos, que colonizaram a Amazônia 
  ocidental. Destes contatos surgiram diversos grupos que sincretizaram o uso da 
  bebida a um contexto religioso cristão-espírita, dos quais a União do Vegetal, 
  no estado de Rondônia, o Santo Daime e a Barquinha, no Acre, são os maiores 
  expoentes.
       Paralelamente ao crescimento dos 
  dois grupos e à expansão do uso religioso e terapêutico da Ayahuasca, uma 
  forte resistência dos setores conservadores da sociedade brasileira se formou, 
  pressionando o Conselho Federal de Entorpecentes (Confen) para embargar o 
  funcionamento destas instituições nos grandes centros metropolitanos.
       Porém, no dia dois de junho de 
  l992, o conselho decidiu liberar definitivamente a utilização do chá para fins 
  religiosos em todo o território nacional. Segundo a então presidente do Confen, 
  Ester Kosovsky, “a investigação, desenvolvida desde l985, baseou-se numa 
  abordagem interdisciplinar, levando em conta o lado antropológico, sociológico, 
  cultural e psicológico, além de análises fotoquímicas”.
       O relator do processo de 
  investigação, Domingos Carneiro de Sá, explicou que o fato fundamental para a 
  liberação da bebida foi o comportamento dos daimistas e a seriedade dos 
  centros que utilizam o chá em seus rituais: “Não foram observadas atitudes 
  anti-sociais dos participantes dos cultos, ao contrário, podemos constatar os 
  efeitos integrados e reestruturantes do Daime com indivíduos que antes de 
  participarem dos rituais apresentavam desajustes sociais ou psicológicos”.
       Coroando o processo de 
  legalização, as entidades religiosas que utilizam a bebida, sem prejuízo de 
  suas identidades e convicções, comprometeram-se a adotar procedimentos éticos 
  comuns em torno do uso do chá, firmando uma carta de princípios. Neste 
  documento, elaborado durante o I Congressso Internacional da Ayahuasca, 
  ocorrido em novembro de 92 em Rio Branco, no Acre, os centros decidiram: vetar 
  a comercialização da bebida, sua mistura com outras substâncias, a prática de 
  curandeirismo e estabeleceram regras para divulgação. Também ficou definido 
  que a participação de menores de idade nos rituais só seria possível mediante 
  a autorização dos pais e responsáveis; e que, sob nenhuma condição, seriam 
  admitidos deficientes mentais, pessoas sob o efeito de álcool ou de outras 
  substâncias psicoativas. 
    A União 
  como entidade
      O sincretismo religioso do Santo 
  Daime - o maior dos grupos que alia uma concepção cristão-espírita às 
  influências indígenas pré-colombianas - tem um ritual bastante simples: os 
  participantes se posicionam em filas formando um quadrilátero, com as moças e 
  as mulheres de um lado e os homens e rapazes do outro, ao redor de uma mesa. 
  Nas festas oficiais, os homens usam ternos brancos e gravatas azuis, e as 
  mulheres, camisa e saias branca com uma jardineira verde com fitas coloridas e 
  usam uma coroa prateada. Ao centro, o Santo Cruzeiro (a cruz de caravaca) e a 
  Estrela do Oriente (o selo de Salomão com uma águia sobre uma lua minguante).
       Após rezarem um terço do Rosário, 
  todos tomam uma dose do chá e entoam cânticos em louvor a Deus, à Virgem Maria 
  e a Jesus Cristo. Além do canto, há também uma dança - chamada de “bailado” - 
  que consiste em deslocar o corpo no compasso da música, em conjunto com todos, 
  para a direita e para a esquerda de forma alternada, em uma espécie de 
  ‘ciranda estática’. Esta corrente de voz e movimento é ritmada por maracás, 
  pequenos chocalhos de lata que quase todos usam. A doutrina é transmitida 
  através das músicas e a estrutura do ritual se assemelha a muitas festas 
  populares do interior do Brasil, provenientes da forte tradição oral das 
  culturas Ameríndia e Afro-brasileira, tais como o Reizado e o Catimbó. “Os 
  hinários”, como os adeptos chamam as cerimônias, começam, geralmente, com o 
  pôr-do-sol para só terminar na manhã seguinte. Os adeptos do culto vêem neste 
  processo uma representação do sofrimento, morte e ressurreição do Cristo. Os 
  hinos, cantados no decorrer da noite, são recebidos mediunicamente e ensaiados 
  com antecedência para a apresentação durante o ritual. As idéias básicas 
  transmitidas pelos hinos são as de solidariedade humana, consciência ecológica 
  e de espiritualização - trovas poéticas entoada em melodias simples e 
  repetitivas, que funcionam como ‘mantras’. “Um hinário reflete o aprendizado 
  da pessoa que o recebeu, que é novamente vivido por todos aqueles que o cantam 
  durante os rituais” - explica Alex Polari, um dos dirigentes do CEFLURIS 
  (Centro Eclético da Fluente da Luz Universal Raimundo Irineu Serra) - “o 
  Hinário do Cruzeiro, recebido pelo Mestre Irineu, fundador da doutrina, por 
  exemplo, é um conjunto de 129 cânticos que expressa sua biografia espiritual, 
  com as provas e experiências que ele enfrentou durante o decorrer de sua vida”. 
  Além disso, cada hinário também se caracteriza pelos ensinamentos de um santo 
  em particular, segundo as características espirituais do guia que orienta seu 
  receptor. Assim, o hinário do Padrinho Sebastião, O Justiceiro, reflete os 
  ensinamentos de São João Batista; o hinário de seu filho, Alfredo Gregório, 
  expressa os ensinamentos do Rei Salomão. No caso do hinário do fundador, 
  Mestre Irineu, por ser o primeiro, encontram-se os ensinamentos de Jesus 
  Cristo.
  
  
       O efeito da bebida do Santo 
  Daime promove uma expansão na consciência que, sem a perda da capacidade de 
  ação voluntária, permite que se observe os próprios sentimentos e pensamentos 
  com maior clareza. No decorrer do ritual, o estado de consciência 
  intensificada pelo chá amplifica as situações recorrentes da vida cotidiana, 
  revelando contradições existenciais e processos interiores que se repetem 
  inconscientemente em diversos níveis. Esses processos involuntários são 
  compreendidos pela consciência intensificada dos participantes, através da 
  corrente formada pelo bailado e pelos hinos, que sugerem sempre uma solução 
  positiva para os problemas. Segundo os participantes do culto, o ritual é “uma 
  auto-análise”. O processo vivido sobre o efeito da bebida, abrindo as portas 
  do subconsciente e ação condicionante do hinário (hinos + bailado) levam a um 
  exame crítico de nossas ações cotidianas, com base nos princípios cristãos.
       Porém não se pode resumir o 
  Santo Daime ao psicológico, nem reduzir seus efeitos à simples conjunção da 
  expansão química da consciência a mecanismos de auto-sugestão hipnótica da 
  doutrina cristã. Há um inegável aspecto espiritual nos rituais, com 
  incorporações conscientes e fenômenos ligados à vidência e à cura. A presença 
  de seres de luz, bem como de obsessores, desencarnados, é claramente sentida 
  no salão. Existem, inclusive, adeptos do Santo Daime no município fluminense 
  de Nova Friburgo que aliam o uso do chá à incorporação de entidades da linha 
  da Umbanda, desenvolvendo um rico relacionamento entre as duas modalidades de 
  trabalho espiritual.
       Porém, para eles, o aspecto 
  espiritual é indissociável do psicológico, uma vez que “os hinos tanto servem 
  para doutrinar os desencarnados como para, simultaneamente, apontar as falhas 
  e os defeitos morais dos participantes, desmascarando a sintonia existente 
  entre o que as pessoas pensam e o que acontece no mundo espiritual”. Neste 
  duplo processo, de auto-desenvolvimento psicológico e desobsessão espírita, os 
  participantes sofrem as “peias” e têm as “mirações”. A “peia” representa uma 
  difícil prova cármica a ser vencida ou o castigo necessário ao perdão dos 
  pecados, o “sofrimento purificador” - que pode se manifestar na forma de 
  vômitos, choro convulsivo, diarréia e mal-estar generalizado. Já a “miração” é 
  uma visão mística, semelhante ao sonho, que mescla a revelação divina com os 
  símbolos do inconsciente, muitas vezes coincidentes com a temática e os 
  personagens dos hinos.
       Além de Jesus Cristo ser 
  freqüentemente sincretizado com o Sol, a Virgem Maria é associada à Lua, ao 
  Mar e à Floresta, e as presenças de São João Batista e do Patriarca São José 
  são constantemente lembradas nas canções do Santo Daime. Outra imagem 
  freqüente é a do “Divino Pai Eterno”, afirmação do princípio monoteísta da 
  doutrina, que impera sobre uma “Corte Celestial de Todos os Seres Divinos”- 
  que engloba, no manto panteísta da Rainha da Floresta, entidades que vão dos 
  Devas Orientais aos Orixás africanos. Porém, a entidade central do ritual do 
  Santo Daime é Juramidam, o “Mestre Império”. Este ser é quem, segundo os hinos 
  e os participantes do culto, preside os rituais e é identificado como o 
  próprio espírito da bebida ingerida nas cerimôminas.
       Os hinos do Santo Daime também 
  versam sobre uma transformação nas condições de vida da humanidade - “o fim 
  dos tempos”, “o Apocalipse”, “o balanço” - e sobre o advento da utopia social, 
  a “Nova Jerusalém”, “o Reino de Deus na Terra”. Em relação a este ideal de 
  utopia social, os participantes dos rituais afirmam que “a vida comunitária é 
  um aspecto fundamental na doutrina do Santo Daime. Através dela aprendemos e 
  construímos na prática o significado da União, que cantamos nos hinários”. 
  Para eles, “quando tomamos Daime e cantamos hinos estamos apenas acelerando e 
  intensificando conflitos e relações interpessoais que se desenvolvem no nosso 
  cotidiano comunitário”. O objetivo a longo prazo, ao que prece, é conquistar 
  no dia-a-dia uma união material tão sólida quanto a união mística alcançada 
  nas cerimônias. “Assim”, concluem, “realizamos o ideal da Nova Jerusalém”. 
  Desta forma, a União, metáfora da comunidade e símbolo da utopia social, é uma 
  das entidades centrais dos rituais e da filosofia da doutrina do Santo Daime.